Quando se desce devagarinho nem se percebe o quanto se desceu

É curioso como, olhando para trás, tudo se degradou a um ponto impensável há 10 ou 15 anos atrás.

Vamos perdendo a pouco e pouco capacidade de impor os nossos direitos mas de uma forma tão suave que parece que nada muda. Como uma pedra que vai rebolando pela areia e que ao fim de uns tempo ficou sem qualquer aresta viva. Ficou suave e rolada.

O curioso é que neste país, este nivelamento por baixo tem o apoio de uma parte da sociedade. A que está em baixo. Que vê a que está mais acima como um lote de privilegiados que afinal deviam ser tão sofredores e tão explorados como os outros.

Com este "apoio", que muitas vezes não passa  de inveja mesquinha, os governos lá vão cortando aqui e acolá até só ficar alguma coisa para a elite que decide. E que decide em seu próprio favor.

Um exemplo recente ilustra bem esta pressão para tornar todos uns desgraçados.

O caso do pagamento aos professores por cada correcção de exames nacionais.

Muitos dos que acham muito bem a directiva do Governo dizem que fazem horas a mais e que não são pagas, deduzindo por isso que ninguém as deveria receber.

O exceder as horas de trabalho semanal sem receber uma compensação por isso, não só é estúpido como é também ilegal.

Essa compensação pode ser feita de muitas formas. Dias de descanso, pagamento adicional pelas horas de trabalho ou, como em algumas empresas privadas, com reflexo numa melhor avaliação anual e um eventual bónus.

Mas como há aqueles que não têm acesso a nada disto e lhes parece mal que os outros tenham, cada vez mais as empresas exigem uma dedicação TOTAL em troca de nada.

O argumento de que já pagam bem ou de que há mais gente que gostaria de ter o nosso lugar é comum e leva a um sentimento de medo que silencia qualquer réplica.
E muitas vezes vão ainda mais longe "exigindo" esforço durante os fins de semana ou fora do horário de trabalho. Em troca de nada.

Parece que já não basta trabalhar bem em troca do salário. É preciso também ter vergonha de exigir um tratamento justo.

Este nivelamento na mediocridade tem efeitos perversos.
Deixa de haver candidatos para a PSP porque são estupidamente mal pagos, deixamos de ter os bons alunos a ir para professores porque essa carreira perdeu o prestígio e o reconhecimento.
Temos gente que não passou de um aluno mauzito no secundário, que teve de tirar um cursinho manhoso numa privada a comparar-se com pessoas de muito maior qualidade académica e que se esforçou para ser alguém.
Como se tudo fosse igual.

Do ponto de vista de quem paga isso é perfeito. Com a bênção dos medíocres conseguem-se passar leis que nivelam tudo por baixo.
Os medíocres continuam a sê-lo, mas agora ficam muito mais satisfeitos porque conseguiram que todos os outros já não se diferenciem pelo que ganham ou pelo prestígio da sua função.

Finalmente acreditam que são todos iguais, Iguais aos piores.

Quando todos  estiverem numa situação em que não podem dedicar tempo à família (ou sequer tê-la), não puderem comprar uma casa porque saltitam entre empregos precários e não puderem planear minimamente o seu futuro teremos um colapso social total.
Iremos extinguir-nos como sociedade e como país. A natalidade em queda já é um reflexo disto.

A incapacidade de lutarmos pelos nossos direitos é evidente.
A reivindicação deu lugar ao silêncio. Os que reivindicam são apelidados de comunas por aqueles que acham que o sistema em que vivemos e que produz miséria em quantidades industriais, é o melhor possível.

Muitas das vezes pensam que a miséria é só para os outros. Acham que um dia se vão poder passear de descapotável com uma jeitosa no banco do lado, chegar à sua moradia minimalista e ligar o seu mega painel de LCD para disfrutar de um bom filme enquanto fazem "negócios" pelo telemóvel. Negócios, investimentos, coisas...
Mas pelo andar da carruagem, não vão ter nada disto. Comprar carros a crédito já deu o que tinha a dar, as jeitosas querem ser modelos "famosas" e preferem quem possa pagar os vícios, e no T0 em Massamá não cabe uma televisão com mais de 19 polegadas.
Mas a falta de consciência social, empatia e ideais vai impedir esta geração de lutar por alguma coisa. O individualismo exacerbado que se apossou da geração dos 20 e muitos, 30 e poucos impede que possam mudar alguma coisa.

As esperanças que tivemos com a liberdade, a esperança de ser um país ao nível de uma Alemanha ou de um país nórdico perdeu-se. Ficaram o emprego precário, as dívidas, o deficit e a austeridade.

Receio bem que já não seja na minha vida que eu veja este país ser aquilo que nunca foi - um país de jeito para todos. Estivemos perto, deram-nos todas as oportunidades mas, muito à portuguesa, estafámos o dinheiro todo em festa e fogo de artificio e fica agora o trabalho de apanhar as canas...
Continuamos a ser parte da Europa. Só que agora somos a parte menos nobre da sua anatomia, se é que me faço entender.