O canil

Era uma vez um canil. Que tinha um líder incontestado.

Um Doberman louco conhecido por Platão, agressivo e conhecido como um animal ao qual não era boa ideia fazer festas.
Habituado a uma vida de domínio e de agressões para manter a ordem no canil acabaria por morrer atropelado por um autocarro cheio de sihks, paquistaneses e moçambicanos que se deslocavam numa excursão a Évora. O que eles lá iam fazer nunca ninguém soube mas dizem as más línguas que foram lá pela gastronomia.

Houve ainda quem o tentasse salvar, mas a maior parte dos que o viram preferiram deixá-lo morrer, só de pensar o que seria tê-lo de novo em condições de morder quem quer que se aproximasse.
Foi-se... Acabou indignamente sujo, com marcas de rodados no pelo que era minuciosamente escovado pelos seus muitos tratadores. Bicho ganhador de prémios, veio a saber-se que só ganhava concursos "arranjados". Mas o que era gasto em produtos para lhe manter o ar saudável e distinto era impressionante.

Ficou o canil sem macho alfa.
E a lista de candidatos não podia ser mais díspar.  Um Rotweiler chamado Coast, um Cão de Água chamado Axxis, um Dálmata chamado Sure e um Pinscher miniatura chamado Vitinho. Havia também um Pug meio desajeitado chamado Marte (como o Deus Romano) que já tinha tentado uma ou duas vezes mandar no canil, até porque o pai já tinha sido o chefe, mas o filho não parecia ter nenhuma das qualidades do pai. A única coisa que tinha do pai era a extrema parecença com ele, especialmente o focinho.

O Rotweiler, apesar de impor um certo respeito passava muitas vezes por ser afável e dado ao convívio com os outros. Estranhamente dava-se muito bem com o defunto Doberman, mas sempre se teve a sensação de que se um dia a oportunidade se apresentasse, acabaria por o "desfazer".
Mas com a morte do líder, o Rotweiler parecia a escolha natural.

Um autocarro encarregou-se do trabalho sujo. Más línguas sugerem que o Rotweiler forçou o motorista a guinar indo acertar no Doberman, mas isso não passam de más línguas

O Cão de água, inteligente, pecava apenas por duas coisas. Um ar pouco digno quando comparado com os outros e um certo problema de vista. Desgrenhado como são todos os cães de água a precisar de tosquia, houve quem atribuísse a sua falta de vista à franja. Mas a verdade é que não tinha franja. Os tufos de pelo estavam muito acima dos olhos o que era francamente atípico da raça. Sobretudo não era nada dado a lutas. Quando enfrentava pancadaria gania muito e fugia. Por causa dessa característica preferia ficar na retaguarda. Mas mesmo assim parecia dar-se bem com o líder. Houve até quem suspeitasse que só ladrava quando o líder o fazia. Só que o fazia mais alto e ladrava mais vezes. Mas sempre no mesmo tom e com a mesma cadência.
Não se pode dizer que fosse um cão bonito. Era apenas pitoresco.

O Dálmata. Bonito, de bom porte e com um certo ar delicado. Quase parecia consciente da sua condição e furtava-se sempre a situações em que se pudesse sujar. Colaborava nalgumas sacanagens, tão típicas dos cães, mas quando se olhava estava afastado, quase querendo dar a entender que não tinha nada a ver com aquilo.

Para quem olhasse de fora, o Dálmata seria mesmo o vencedor. Mais elegante, mais alinhadinho era do ponto de vista estético o ideal para liderar o canil.

Mas o Rotweiler não estava pelos ajustes. Um cão daquele porte poderia muito bem decidir que agora era a sua vez. E o Dálmata, ao contrário do Dobermam, não era um cão possesso e resfolegante de quem se  arriscasse a levar uma dentada dolorosa.
O cão de água não tinha mesmo ar de ser líder de nada. Desde que o alimentassem com algumas sobras certamente que ficaria apaziguado e contente. Quase parecia que tinha consciência das suas limitações.

Mas havia ainda um Pinscher miniatura. Animal de pequeno porte e comportamento eléctrico; com um ladrar esganiçado que se fez ouvir durante uns tempos.
Importado da Europa, onde dizem as más linguas terá ganho todos os concursos de ensino que havia para ganhar, era considerado o animal mais inteligente de todos.
Nunca ninguém soube se era verdade.
Lá que estava ensinado, estava. Só se manifestava quando lhe mandavam e fazia alguns trabalhos que os outros não tinham pinta para fazer. Laborioso e arrumadinho fazia cócó sempre no mesmo sítio. Ao contrário do Doberman que era conhecido por espalhar bosta por todo o lado. Mas daí a ser o cão top na Europa ia uma distância considerável. É sabido que por lá há animais de outra estatura e para ganhar em concursos internacionais é preciso alguma dimensão.
Verdade ou não, passeava acompanhado do Dobermam.
Havia qualquer coisa nos dois que os unia. Talvez porque o Dobermam tenha resultado dum cruzamento de várias raças, entre elas o Pinscher. Davam-se bem.
Houve períodos em particular em que foram vistos juntos várias vezes mas sempre tentando aparentar uma certa distância

A verdade é que o Pinscher apesar de ser engraçado e activo não seria um bom pretendente ao lugar de líder. Um espirro do Rotweiler e lá iria o pobre cair no meio do campo. Também não manifestava muito a sua intenção de competir. Era mais um cão de bastidores.

E no fim havia o Pug. Feio, mais feio que o pai e sem a sua desenvoltura. Um mau cruzamento diziam uns, uma decepção diziam outros. Muito dado a desaparecer por largos períodos, quando voltava parecia que se passeava com uma certa cagança por ter estado fora. Rabinho retorcido, andar saltitante e respiração ruidosa tão típica de cães com um crânio daquele formato. Sacaninha nas lutas fingia ser conciliador apenas para dar umas ferroadas pela calada.
Teimoso e pouco dado ao ensino, não se esperou nunca grande coisa dele. O pai, esse sim, animal espertalhoco (ainda que feio) tinha um não sei quê de apelativo. O filho, népia.

Havia incerteza no canil. O mais certo era que se acabesse numa luta e que dessa luta alguém saisse aleijado.
O mais provável seria o bonitinho Dálmata safar-se.
Há algo de bizarro nestas coisas da sucessão em que muitos asseguram que ganha o cão mais bonito. Não o mais útil ou o mais inteligente, mas sim o mais bonito.
O único problema que se antecipava era o facto de o Dálmata ser "delicado".

Fosse como fosse só se veio a saber o resultado uns meses depois. Mas a verdade é depois da morte do Doberman o cheiro desanuviou muito no canil. Esse malfadado animal urinava e fazia cócó por todo o lado e durante anos não fez outra coisa. Tinha que causar algum dano...