Fora deste mundo - a constatação do alheamento

Por causa da recente greve dos professores tive uma conversa interessante com um professor meu conhecido e com o qual privo com frequência.
Como todos e especialmente dado a sua idade e posição na carreira, está preocupado com a mobilidade especial mesmo não sabendo muitos pormenores acerca da forma como se vai processar.

A questão que o afecta é a mesma de todos. Estão positivamente aterrorizados de serem colocados na mobilidade especial que é para eles sinónimo de despedimento.
Não saberem os critérios para essa colocação só agrava o estado de espírito. Qualquer pessoa que nunca enfrentou essa possibilidade começa a especular e a ficar em pânico com todos os cenários possíveis.

Mas o curioso da conversa foi a linguagem enquistada nestes profissionais e que torna muitas destas conversas um exercício de puro masoquismo.

A defesa do ensino público
Perguntei-lhe porque é que dizia isso. E a resposta foi no mínimo atabalhoada. A explicação parte do princípio que a saída de professores deixa o sistema com um deficit de docentes que obriga a descer a qualidade e consequentemente a abrir as portas ao ensino privado. Quando confrontado com o facto de estar a haver um decréscimo de alunos o que vai acabar por tornar muitos professores em docentes com horário zero, a explicação passa para o direito ao emprego "consagrado na constituição".
A defesa do ensino público acaba por se confundir com a defesa do seu emprego. O ensino público acaba por ser um eufemismo para a sua situação. O ensino público está bem se eles estiverem bem.

A discussão foi avançando com as comparações com o sector privado ficando mais ou menos claro que quem está no privado dá ênfase à segurança  e no público às vantagens que o sector privado tem.

Mas o que mais me fez confusão foi perceber que há uma barreira qualquer que não os deixa perceber que o que o sector público custa (pago com dinheiros públicos) é pago pelos impostos do sector privado.
A razão tem que ver com o facto de os funcionários também pagarem impostos.
O que é mais ou menos irrelevante porque deduzido o IRS retido na fonte, o liquido é pago do dinheiro público.

Uma afirmação deixou-me perplexo. E ela ilustra que na maior parte das vezes mesmo as pessoas mais inteligentes acham que o dinheiro público não é de ninguém e que não há a verdadeira noção do conceito de custo.
Quando eu lhe dizia que o trabalho de uma pessoa no privado gerava mais valias que eram tributadas com IRC e com IVA, o que não acontecia no público, a resposta foi que isso não existia porque o Estado fornecia os serviços gratuitamente. Não vendia os serviços que realizava.

Fiquei verdadeiramente perplexo com esta visão das coisas. Gratuitamente? Toda aquela conversa de o Estado consumir mais de metade da riqueza gerada no país não levou estas pessoas a fazer uma ligação entre o que é o custo do sector público e aquilo que os cidadãos pagam em impostos?

Na verdade os serviços públicos são tudo menos gratuitos. Se por acaso tivéssemos de pagar os serviços do estado como fazemos com os privados, em vez de irmos pagando com os nossos impostos, ficaríamos perfeitamente indignados com o custo e o serviço. Imaginem ter o vosso filho numa escola pública e pagar todos os meses 500-600 euros de mensalidade. Aceitariam aquele tipo de serviço por esse preço? Na maior parte dos casos diriam que não.
Por isso muitos além de pagarem isso (para que os filhos dos outros possam ter acesso à educação "gratuita") pagam ainda por cima a educação dos seus filhos no ensino privado. Onde são avaliados, onde existem regras e disciplina etc etc.
Na verdade alguns têm essas coisas gratuitas porque outros são sobrecarregados com impostos para as sustentar.
E parece não haver nenhuma preocupação com o custo desses serviços ou com o facto de haver gente sem fazer grande coisa apenas porque tem o "direito" de estar ali, à espera do dia em que se vai aposentar.
Quanto me custa a mim e aos outros contribuintes a educação "gratuita"? Estaria eu disposto a pagar, ali al contado todos os meses, 500 ou 600 euros de mensalidade pela escola pública de um dos meus filhos? Absolutamente não.

O maior problema que os professores têm com tudo isto é a arbitrariedade da escolha de quem vai para a mobilidade especial. Estão mais preocupados aqueles que não têm horário, obviamente. Não há nenhum critério que possa ser aceite por todos. Tal como não o houve para serem avaliados. Não querem correr o risco de que possa calhar a eles. E percebo isso. Só que não posso aceitar que num país em que o sector privado paga forte e feio a factura do Estado e ainda se vê a braços com o espectro do desemprego pague alegremente todos estes direitos sem questionar competências, dimensionamento e eficácia do serviço público.

A suposta defesa do "ensino público" com que gostam de cobrir as razões da "luta", desde as  mais nobres às mais inconfessáveis, não existe.
Não são seguramente os professores como um todo a fazer essa defesa. O que está em causa não é defesa do ensino público sequer. O "meio" está cheio de gente com qualidade que se acomodou e de gente acomodada sem qualidade.
A única coisa que une os professores como um todo é a garantia de emprego.
Porque a classe é muito variada e muito pouco unida e solidária, como aliás em todo o lado.
Os professores que chegam são atirados às feras pelos seus colegas. Literalmente. Sem qualquer prurido nem hesitação. Os professores novos são confrontados com horários indecentes e com turmas pavorosas. Porque no ensino a antiguidade é um posto e porque os professores mais "experientes" cortam e recortam para si a melhor parte do bolo.
E isto pode ser perfeitamente confirmado por quem quiser.
Os professores foram-se adaptando ao dia a dia. Se era trabalhoso reprovar um aluno passavam-no. O problema seria para o seguinte.
Se existe um risco que a avaliação faça vir alguns podres à superfície, contesta-se. Com a mesma argumentação de sempre - a defesa do ensino público.
A verdade é que a preocupação com o ensino público é da boca para fora. Durante anos pactuaram com um sistema disfuncional de forma crescente, protestaram timidamente contra as suas condições de trabalho, a sua falta de poder disciplinar sem dizer nada como classe.
Aceitaram pacificamente que os alunos saíssem cada vez pior preparados sem abrir a boca. Até era cómodo porque assim o esforço de "puxar" por alguns alunos nem era necessário.

Em suma, a classe só existe quando vem para a rua arregimentada pelos sindicatos a clamar por "direitos" adquiridos. Nem que esses direitos sejam absurdos ou impagáveis.

Dizia-me este professor que quando só houver ensino privado logo veremos. Sem hesitação eu digo: venha ele. Descontem-me dos impostos o que eu pago por este sistema caduco e pejado de ineficiências e eu pago alegremente o privado. Aliás, só poderia poupar em relação ao que gasto hoje. E mesmo o suposto ensino público gratuito superior paga à volta de 1000 Euros por ano em propinas apenas. Sem contabilizar todos os custos associados. Portanto acerca da gratuitidade estamos conversados.

A cultura de desresponsabilização vem de longe. Quando era preciso mais dinheiro gastava-se. E toda esta gente que não faz ideia do que é justificar o seu salário (e há muitos acreditem) vê-se hoje a braços com critérios de eficácia. Chama a isto liberalismo e afirma que é a destruição do sector público.

Uma greve para ter efeito tem de fazer-se sentir. É verdade. Mas há muitas formas de isso acontecer sem deixar plantados milhares de alunos. A greve podia ser às correcções dos exames. Ou podia ser numa outra data qualquer. A bem dizer o calendário de exames foi publicado primeiro. A ter de adequar as datas deve ser quem marca depois. Não é intencionalmente fazer cair a greve em cima dos exames e depois dizer que é o governo que não quer mudar. O que tinha a data de tão importante para ser marcada? Os exames. Ou seja, os sindicatos não estavam nada interessados em não "cair" em cima dos exames. A sua intenção era causar a maior disrupção possível ao ministério.
Desse ponto de vista só posso concordar que, se não quiserem ver os exames afectados, os sindicatos marquem para outra data. Simples.

Como acreditar que os sindicatos estão apostados na defesa do ensino público quando deliberadamente escolhem uma data que é claramente gravosa para milhares de alunos no país? E insistem que se alguém mude a data que seja o ministério?
Tenho muita pena de ver gente com pretensões legítimas enredada nesta teia de interesses e manutenção do status quo. E tenho muita pena que mesmo pessoas objectivas e inteligentes sejam incapazes de se "despir" dos seus interesses e olhar para as coisas de forma desapaixonada.