Um povo em fúria

O que somos nós? Que espécie de povo somos nós?
Faço muitas vezes esta pergunta e raramente me saio com uma resposta satisfatória. E isto talvez porque não haja apenas uma resposta. Porque somos uma série de coisas.

Somos sobretudo um povo totalmente alheado das questões que realmente nos afectam até ser tarde de mais.

O exemplo mais perfeito disso é precisamente o que estamos a passar. Quando antecipadamente alguém avisa de que estamos a caminhar para um abismo levantamos a nossa voz chamando-lhes pessimistas, velhos do Restelo. Políticos, comentadores de circunstância, ex-dirigentes partidários a caminho de futuros dirigentes partidários. Todos. Em coro, martelam-nos os tímpanos na TV e na rádio até só conseguirmos ouvir soundbytes no nosso dia a dia. Mal entendidos, distorcidos, deliberadamente adaptados.

Foi assim pelo menos durante os últimos 5 ou 6 anos.

Se algum sector da sociedade se levantava clamando por direitos ou por uma visão diferente das coisas, eram uns parasitas, corporações, corruptos, vigaristas. Foram médicos, professores, juízes, notários. Todos.

Foi-se percebendo que o país estava deveras mal. Mas o nosso povo convenceu-se sózinho de que se a razão do mal não era ele, não era ele que ia pagar.

Durante anos cometeu alguns erros de julgamento. Se calhar comprou uma casa um pouco mais cara do que devia e não percebeu que o mundo muda em 30 anos. Poupou pouco. Gastou até ao limite e até para lá do limite.
Depois culpou a banca que lhe emprestou o dinheiro porque o aliciou... assinou um papel porque estava mortinho por ter o carro, a casa ou o seguro e não leu a letra miudinha. E depois reclamou que estava a ser enganado.
Viveu num país de economia estagnada há mais de 10 anos e nunca se perguntou como é que um país vivia gastando sempre mais do que tinha.

Viveu à margem de tudo. Centrado em si como se tudo o resto não o afectasse.
Aplaudiu os novos estádios de futebol, chamou nomes à justiça quando se prenderam pedófilos e se investigaram corruptos.

Este povo, que hoje se encontra à beira do abismo exige respeito. Agora exige respeito. Mas não se soube respeitar nem soube dar-se ao respeito
Votou em demagogos incompetentes, votou depois num presidente porque na sua ignorância típica achava que por o homem ser de finanças ia ajudar a endireitar o país....

Quando percebeu que nada disso aconteceria ficou zangado com ele. Chamou uma senhora de velha salazarenta, distorceu as suas palavras para lá do razoável porque ela "não tinha boa imagem". A ditadura do fútil e do vácuo na política. Mais uma vez propagada pelos comentadores, fazedores de opinião. A nossa elite, Deus nos valha.

Agora enfurece-se. Porque o governo que elegeu não tem uma varinha de condão como o Harry Potter e nos saca o pouco dinheiro que nos resta para pagar os desmandos dos que estiveram antes no lugar.
Enfurece-se com tudo. Com razão e sem razão.

E um dia sai à rua numa manif com cartazes de todas as cores e feitios com frases que vão do inteligente à mais absoluta indigência intelectual e espera que tudo mude.
O sistema não funciona - diz aos gritos. Mas quando lhe perguntam "então qual?" não sabe responder porque nem sabe o que é um sistema político nem sabe se existe algum sem partidos.
Fica baralhado porque os países nórdicos tambêm têm partidos e funcionam bem.

A única solução que lhe ocorre quando esgota em pensamento todas as opções é "a revolução". E depois o quê? O vazio? "bolas, ou voltamos a ter ditadura ou democracia com partidos... hum"

Na verdade isto é o resultado de um povo embrutecido por mentiras e meias verdades, ensinado a olhar para outras coisas bem menos impactantes na sua vida. A bola, as novelas, os reality shows, as séries (as novelas dos 30 something que se acham "muito à frente")

Na verdade o nosso sistema não funciona com partidos porque a nossa sociedade não funciona. Gostamos do fácil, de obter as coisas com um mínimo de esforço. Os pais até se insurgem contra o sistema de ensino por exigir... O sistema aquiesce e acaba com a avaliação de conhecimento e passa a avaliar "competências". E na senda da certificação relâmpago - Novas Oportunidades.
Um MBA de 6 meses por uma "simbólica" quantia em propinas. Compra-se tudo e o que não se consegue comprar tenta-se arranjar de graça.

Não é de admirar que os nossos politicos sejam uma trampa. Ou que os nossos gestores sejam uma trampa. A conjuntura fazia com que tudo funcionasse sem esforço. Havia dinheiro, não era preciso ser bom. Bastava estar lá. Dos bons nem ouvíamos falar. Agora beijamos-lhes os pés e ficamos orgulhosos por fazerem bons sapatos que exportam ou bons vinhos que dão milhões ao pais.
Mas quando éramos "finos" e sofisticados tinhamos  as mulheres a suspirar por uns Prada ou Louboutin e os homens a comprar Sebago ou o sapatinho italiano da moda. E transformámo-nos em gourmets refinados que só "bebiam" Châteauneuf-du-Pape ou na poir das hipóteses Barca Velha.

Somos, em suma, um país de merda. Com um povo de merda que tem produzido políticos da mais refinada merda.

Mas estamos furiosos por isso. E só isso é uma espécie de redenção por toda a porcaria que deixámos acontecer durante 38 anos sem nunca, mas nunca questionarmos onde nos ia levar.

Pois trouxe-nos aqui.
Enjoy you handy work